Como caraterizaria a importância do Festival Internacional de Cinema da Rota das Sedas?
O Silk Road International Film Festival quer posicionar-se como o principal Festival de Cinema da China, sob patrocínio oficial, logo depois dos Festivais de Xangai (o mais antigo e onde a tradição cinematográfica é a mais antiga do país) e de Pequim (onde mais meios e recursos têm sido disponibilizados para tentar concorrer com os grandes festivais internacionais já estabelecidos). Xi’an tem uma posição estratégica na articulação das áreas do Oeste da China com a Ásia Central e daí para a Europa, o que é o cerne mesmo do conceito de "Nova Rota de Seda”. A bandeira da Rota da Seda, e a projecção de "softpower” a ela associada, corresponde ao desejo de estruturar de alguma forma a selecção de países-alvo de acções de promoção cultura chinesa, ao mesmo tempo que autoridades Xi’an tinham aqui mais uma oportunidade de recordar, com toda a justiça, que as caravanas de camelos que iriam atravessar a Ásia, na Rota da Seda dos tempos clássicos eram em Xi’an que iniciavam o seu percurso - e que depois alcançariam as cidades míticas de Samarcanda ou Bukhará. Xi’an tem de facto uma importância cultural e histórica que vai muito para além do icónico – e Património da Humanidade - túmulo do imperador Qin Shi Huang com a sua escolta de guerreiros em terracota.
De que forma é que surgiu a presença portuguesa neste festival?
Estava a ser preparada a Festa do Cinema Português na China, com contactos muito adiantados e grande parte dos filmes a ser exibidos nesse quadro já se encontravam em Pequim, quando a cinemateca nacional chinesa (o Chinese Film Archive), o organizador chinês da Festa, nos perguntou se estaríamos de acordo em que se visionassem alguns filmes portugueses em Xi’an nesse SRIFF que iria ter lugar umas semanas antes. Aceitámos, até porque significou mais um estreitar das relações entre as instituições portuguesas (como o ICA e a Cinemateca) e chinesas (com à cabeça o China Film Archive e a sua tutela institucional da Administração Estatal para a Imprensa, Publicação, Rádio, Cinema e Televisão), e da possibilidade de "rotinar” projectos de cooperação e de exibição recíproca dos respetivos Cinemas.
Como foi a reação aos filmes portugueses exibidos?
Tanto quanto sei, foi uma aposta que valeu a pena. Tenho mais algum feedback sobre o "Cartas de Guerra” do Ivo Ferreira porque estive no auditório em Xi’an onde o filme ia ser estreado, em que a audiência era composta em grande parte por estudantes de Português da XISU (Xian International Studies University), do 1º ao 4º ano da licenciatura, e três professoras (a Embaixada tinha feito saber de antemão que o embaixador iria de Pequim e que falaria aos estudantes antes da projecção começar...). Como reportei então para Lisboa, pelos canais internos do Ministério dos Negócios Estrangeiros: "Tive 20 minutos para na própria sala de cinema arengar sobre o que se poderia retirar do filme que iam ver e ouvir (na língua que estavam a trabalhar para aprender), incluindo da circunstância do personagem principal ser não outro que o maior escritor português vivo. Entreguei à Professora Sofia um exemplar do 2ºCaderno do "Expresso” recentemente publicado, com a fotografia do jovem alferes médico António Lobo Antunes na capa, contendo inúmeros artigos relacionados com filme e com obra, e pedi para que com o material desse jornal e com as impressões colhessem do filme aprofundassem um pouco o assunto, e que depois me dessem novas. O entusiasmo da audiência foi análogo ao que experimentei quando visitei a XISU em Novembro último” . Entretanto recebi da Professora, por WeChat (!) comentários encomiásticos sobre o filme e sobre a curiosidade que a película tinha despertado nos estudantes. Uns dias depois mandou-me uma mensagem, cheia de emojis sorridentes, a dar-me conta que um segundo visionamento do mesmo filme tinha tido lotação esgotada.
No âmbito do estreitamento das relações culturais entre China e Portugal, qual a importância deste convite?
É duplamente importante, porque representa mais um veículo para aumentar a ideia que os chineses possam fazer de nós e da nossa cultura e porque permite que não percamos o "comboio” da "Belt and Road Initiative”. De resto estava subjacente que os países participantes demonstravam assim o seu interesse por um projecto crismado "Silk Road Film and Television Bridge”, relativo a receberem anualmente um festival de cinema chinês de duração de um mês e serem envidados esforços ainda para o desenvolvimento de parcerias com cinemas desses países para serem exibidos ao longo do ano numa sala filmes chineses previamente selecionados e distribuídos; ao mesmo tempo que a Cinemateca Chinesa se empenharia em concretizar na China festivais recíprocos do cinema desses países.
Como surgiu a Festa do Cinema Português na China? Como justifica o interesse manifestado pela cinematografia portuguesa?
Vou-lhe dizer o que a Cinemateca me disse para sublinhar: A Festa do Cinema Português na China tal como a congénere que se realizou em Portugal sobre o Cinema Chinês são oportunidades para as cinematecas dos dois países entrarem em contacto, partilhando as suas realidades, os desafios que cada uma delas enfrenta para a salvaguarda do seu património cinematográfico, e abrindo espaço para colaborações futuras. O diálogo entre cinematecas faz-se muitas vezes nos congressos internacionais das cinematecas, mas esse contacto por vezes não chega. Por isso, espera-se que estas duas Festas resultem em contactos mais profundos entre ambas as instituições e que tenham um efeito catalisador para que se organizem outras retrospetivas e ciclos de cinema português e chinês a realizar nos dois países, e cujo contacto entre os responsáveis das duas cinematecas nestas duas Festas irá certamente facilitar.
É também essencial relevar o papel do ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual), neste esforço muito particular de "internacionalização”. O ICA, no âmbito da sua atividade e como forma de promover o cinema e o audiovisual, tem de facto vindo a intensificar nos últimos dois anos a internacionalização das produções nacionais, através da atribuição de apoios financeiros neste âmbito, na presença nos principais Festivais e Feiras Internacionais para o setor, na promoção, através das autoridades competentes, da celebração de Acordos Internacionais de Co-Produção, os quais contribuem para a divulgação do cinema e do audiovisual nacional bem como para a melhoria e sustentabilidade financeira do setor.
Estou muito curioso de ver o impacto deste festival, até porque me dizem que Festas têm suscitado grande interesse nos meios culturais em Portugal e na China, e tiveram também a capacidade, sempre crucial, de mobilizar apoios de entidades privadas (não as cito explicitamente porque a lista não está fechada).
Considera que a obra de Manoel de Oliveira, que terá um ciclo dedicado nesta Festa, foi determinante para o reconhecimento do cinema português na China?
Claro que a longevidade absolutamente excepcional do nosso grande Mestre sempre despertou a "awareness” no público mesmo antes de conhecerem as suas obras. Começar a filmar no final do mudo e ainda ter realizado filmes mais de oitenta anos depois do seu primeiro trabalho é mesmo incrível. Foi um estandarte cravado na China, digamos assim, para não abusar da metáfora das lanças em África. E há uma bela simetria entre o espaço dedicado a um Autor na nossa Festa, e aquele que na Festa do Cinema Chinês em Portugal representou a Retrospectiva da obra de Xie Jin. A obra de Oliveira tem porventura uma ressonância entre o mundo cinéfilo chinês que decorre da relação partilhada com a Literatura, e até, como assinala José Manuel Costa, com " a liberdade e a intensidade típicas da expressão poética”.
Em que locais se vai desenrolar a Festa do Cinema Português?
Em Pequim, e em Changsha também.
Changsha é a sede do maior produtor, distribuidor e exibidor nacional: o Xiaoxiang Group. Isto torna -a numa das cidades mais importantes para a cinematografia chinesa?
É muito importante ter parceiros chineses relevantes quando nos lançamos à conquista desta audiência, deste público, deste mercado, e isto em qualquer ramo de actividade, da exportação de vinhos generosos à exibição de grupos de dança contemporânea. O Xiaoxiang Group já demonstrou a sua valia e utilidade como parceiro para os objectivos de promoção deste muito particular produto cultural português.
São quase dois meses de divulgação do cinema português na China. Que impacto espera junto do público e nas relações entre os dois países?
Não há resultados significativos no "acordar” do público chinês para a nossa cultura sem uma persistente, muito paciente, acumulação de estímulos, que têm de ser continuados, e até teimosos. É neste trabalho de sapa essencial que colocaria esta Festa do Cinema Português na China, que em boa hora foi possível organizar.
Com o estreitamento de relações entre as Cinematecas chinesa e portuguesa, abre-se o caminho para a realização de novas mostras de Cinema Chinês em Portugal e Português na China?
A ideia é essa, claro.
Considera que o encontro entre Produtores Portugueses e Chineses que o ICA pretende promover e a assinatura de um Acordo de Co-Produção Internacional entre os dois Países, pode contribuir para a realização de projetos cinematográficos e audiovisuais e o fortalecimento das relações culturais entre os dois Povos?
Se conseguirmos concretizar um projecto cinematográfico co-produzido por nós e por entidades chinesas teremos ascendido à "Primeira Liga” do relacionamento cultural bilateral no domínio do Cinema. Faço votos que com o quadro formal acordado e com os laços entre instituições e agentes das indústrias criativas dos dois países, que estas Festas proporcionaram, esse objectivo não esteja longe de ser alcançado.
Se me permite, faria também uma referência a uma outra bandeira a que nós e a China atribuímos grande importância no nosso relacionamento internacional, que é o da relação entre a China e os Países de Língua Portuguesa, incluindo na dimensão coberta pelo papel próprio que o "Forum Macau” desempenha. Creio que valerá a pena explorar este contexto da relação da Lusofonia com a China, porventura com as instituições culturais de Macau envolvidas, para tornar porventura mais facilmente concretizáveis, ou de forma mais expedita, os projectos de coproduções cinematográficas.